É possível dolarizar a economia argentina como propõe Javier Milei?
Dolarizar a economia para abandonar o peso argentino é uma das principais promessas do candidato que se diz 'libertário'.
O candidato presidencial argentino Javier Milei, que venceu primárias das eleições no domingo (15/08), diz que é o único que pode acabar com a inflação no país - para isso o candidato do partido La Libertad Avanza quer dolarizar a economia.
O resultado de Milei nas primárias, com mais de 30% dos votos, o coloca como favorito para as eleições gerais de 22 de outubro, à frente da ex-ministra da Segurança de Mauricio Macri, Patricia Bullrich, e do atual ministro da Economia, Sergio Massa.
Dolarizar a economia para abandonar o peso argentino é uma das principais promessas do candidato que se diz “libertário”. Ele também quer “dinamitar” com o Banco Central e “passar uma motosserra” nos gastos do Estado.
“Quando falo em queimar o Banco Central, não é uma metáfora, quero explodir, mas isso é literal. Ou seja, fazer implodir e deixar todo o entulho para trás”, disse Milei, cujo plano é que o país pare de imprimir cédulas e que todas as transações sejam feitas em dólares.
Ele diz que essas medidas acabariam com as dificuldades de grande parte dos argentinos, que hoje lidam com uma previsão de inflação anual de 115% e com uma pobreza de quase 40%.
Mas até que ponto essas medidas conseguiriam entregar o que Milei promete?
Quem é Milei e o que ele propõe
Apoiador de políticos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, Milei afirma que é “tecnicamente viável” dolarizar a economia argentina. Ele diz que está "começando a discutir o formato do projeto de lei a ser enviado ao Congresso para dolarizar a economia" caso se torne presidente.
Originalmente, sua proposta era dolarizar em dois anos e meio, mas depois passou a dizer que vai implementar o plano no “menor tempo possível.”
Porém, para dolarizar é preciso ter um estoque de dólares - e é justamente isso que a Argentina não tem, já que as reservas do país diminuíram drasticamente e a disponibilidade de dólares é limitada.
Milei disse em uma conta nas redes sociais que já teria um caminho para obter os dólares a um valor de mercado, mas não explicou como.
Segundo estimativas do grupo de assessores do candidato, atualmente são necessários cerca de US$ 35 bilhões para implementar a ideia.
Segundo Milei, o fechamento do Banco Central permitiria que os dólares do BC como reservas internacionais pudessem ser colocados em circulação.
Antes de avançar para a dolarização, diz Milei, ele flexibilizaria o mercado de trabalho e abriria a economia. O segundo passo, segundo ele, seria eliminar o órgão que regula as instituições financeiras para que haja "competição entre moedas".
“Depois que você desregulamenta, você escolhe o que quer. Você pode usar ouro, franco suíço, libra", afirmou em declarações à imprensa local. A última fase para conseguir a dolarização seria trocar alguns recursos do Banco Central por "dívida pública" e usar outros recursos para injetar dólares na economia, fechando a agência que imprime os pesos argentinos. Seus assessores argumentaram que, no final, os argentinos escolheriam o dólar como moeda.
'Quase impossível'
Economistas ouvidos pela BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, no entanto, consideram pouco provável que a dolarização possa ser implementada e, se acontecesse, não seria a solução para os problemas da economia da Argentina.
"Dolarizar a economia Argentina de um dia para o outro é quase impossível porque o Banco Central não tem dólares", diz Sebastián Menescaldi, diretor adjunto da consultoria EcoGo.
Para dolarizar, argumenta o economista, seria preciso tomar dólares emprestados, mas como o país tem um alto índice de endividamento, é muito improvável que consiga esses empréstimos.
Também não é garantido que a dolarização seria um sucesso.
“Você estaria se submetendo à política monetária de outro país e isso pode ser prejudicial. E os vícios de um déficit fiscal excessivo ou de um desequilíbrio econômico também podem persistir. Dolarizar não é uma panaceia”, diz ele.
Além disso, Milei propôs um conjunto de reformas pré-dolarização que não são fáceis de implementar.
Essas reformas estruturais, diz Menescaldi, até "fazem sentido", mas se elas forem alcançadas, não “fará mais sentido dolarizar".
Do ponto de vista político, Milei precisaria de uma maioria no Congresso para implementar seu plano, algo com que não conta no momento.
Alto custo social
Segundo Claudio Caprarulo, diretor da consultoria Analytica, a dolarização proposta por Milei é impraticável na economia argentina.
“O custo social seria muito alto”, diz o economista à BBC Mundo.
“Para chegar à dolarização, o país passaria por uma mega desvalorização, a inflação subiria muito no começo e haveria uma queda gigantesca nos salários dos trabalhadores”, acrescenta.
Fechar o Banco Central, diz ele, é um dos “planos extremistas” de Milei.
“É necessário ter ferramentas para fazer política econômica e monetária, e isso se faz através do Banco Central.
O mais próximo que a Argentina teve de uma dolarização foi a paridade entre o dólar e o peso - um sistema de câmbio fixo em que um peso valia sempre um dólar - implementado no começo dos anos 1990 pelo presidente neoliberal Carlos Menem.
A paridade mostrou “todos os defeitos e problemas de atrelar a moeda nacional ao dólar”, segundo Caprarulo.
“Ao substituir a moeda nacional, a economia fica muito mais inflexível e se reduz a competitividade. Não resolve os problemas", acrescenta.
Embora reconheça que a paridade permitiu conter um processo hiperinflacionário, o economista lembra que ela também causou problemas como as elevadas taxas de desemprego e deixou a economia “muito sujeita” às subidas e descidas da economia internacional.
Como a dolarização da Argentina se compara com a dolarização do Equador
Na América Latina existem três países dolarizados: Equador, El Salvador e Panamá.
Milei deu como exemplo a dolarização equatoriana, descrevendo-a como um “sucesso” e afirmando que os equatorianos estão “muito melhor” do que os argentinos.
Para aplicar uma política semelhante, o candidato declarou que uma das possibilidades poderia ser "uma mistura" entre a dolarização equatoriana e salvadorenha, em termos de velocidade de implementação.
Há mais de 20 anos o Equador iniciou sua dolarização quando a economia atravessava uma crise tão profunda que a medida foi concebida como a última cartada para salvar um país à deriva, com uma hiperinflação que chegava a 96% e a moeda nacional, o sucre, completamente desvalorizada. Naquela época, o presidente Jamil Mahuad dolarizou a economia equatoriana, em meio a um clima de polarização política que levou à sua saída do governo.
No ano seguinte, o então presidente de El Salvador, Francisco Flores, anunciou que o país usaria duas moedas: o colon de El Salvador e o dólar. Mas o dólar passou a ser praticamente a única moeda do país.
Ao contrário do Equador, que trocou de moeda por estar em meio a um choque econômico, a dolarização salvadorenha respondeu mais a uma questão de interesse econômico, já que era condição essencial para a aprovação do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, que eliminou as tarifas alfandegárias para ambas as partes.
A questão é que os contextos dos três países dolarizados da América Latina eram muito diferentes do contexto atual da Argentina.
“(Os três países) são economias muito pequenas que estão diretamente integradas ao comércio com os Estados Unidos”, diz Caprarulo.
O Equador dolarizou depois de ter passado por uma crise muito forte que era essencialmente bancária.
"A Argentina não está passando por uma crise bancária, os bancos têm uma alta liquidez em dólares para", acrescenta.
Além disso, diz, “o Equador não resolveu seus problemas de crescimento, de produtividade. O país tem apresentado muitos problemas sociais, muita fragilidade”.
Sebastián Menescaldi, da EcoGo, diz que é difícil comparar países tão diferentes.
“Nosso país é muito maior que o Equador ou El Salvador. Nosso mercado é diferente, nossas relações econômicas são diferentes”, afirma o economista argentino.
Apoio
Apesar da maioria dos economistas ouvidos pela BBC acreditar que a ideia de Milei é impraticável, há quem defenda a dolarização na Argentina. O economista Steve Hanke, professor da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, e ex-assessor do ex-presidente Carlos Menem (o que promoveu a paridade) entre 1989 e 1999, disse que “a única maneira de resolver definitivamente o problema do peso argentino é fazer oficialmente o que a maioria dos argentinos faz extraoficialmente: dolarizar”.
Em uma entrevista à BBC Mundo em 2020, ele afirmou que a Argentina "deveria se livrar do peso e colocá-lo em um museu".
Na Argentina, no entanto, muitos analistas veem a proposta de Milei como uma mensagem populista para obter votos, e não como uma proposta realista que ele poderá colocar de fato em prática caso se torne presidente.
“É uma mensagem populista muito bem pensada, mas a capacidade de implementação hoje não existe”, diz Minescaldi. "Algo que aprendemos com o fim da paridade é que termos nos amarrado a um sistema monetário muito rígido nos causou um aumento muito acentuado da pobreza e do desemprego, algo que a dolarização também pode causar."
Segundo o economista, embora a dolarização possa reduzir a inflação, ela também pode gerar maior concentração de renda e maior instabilidade.
Ainda faltam dois meses para definir quem pode chegar à Casa Rosada. Com a virada que Milei conquistou nas primárias, todos os cenários estão em aberto.